terça-feira, 19 de dezembro de 2017

O voluntariado em grupos disfuncionais

A ideia de trabalho voluntário costuma ser vista como algo bom, uma demonstração de amor, compaixão e dedicação pelo próximo. O voluntariado é um exercício de algo em favor de outro, sem expectativa de receber algo em retorno. Todos fazemos algum trabalho voluntário, em certo nível, no momento em que decidimos proporcionar um bem a outra(s) pessoa(s) sem esperar retribuição. Entretanto, é preciso ter consciência de que, por este mesmo fator - a não-retribuição - o trabalho voluntário também pode servir ao interesse de grupos exploradores, interessados em se aproveitar do trabalho alheio dando nada ou muito pouco em troca.
Trabalho pode ser qualquer atividade que produza valor, algo útil para alguém. Muitos organizações buscam obter benefícios às custas dos demais, sem gerar a devida retribuição a estes. A isso damos o nome de exploração. Algumas organizações conseguem manter a exploração através da força. Outras, sem tanto poder de força, usam da manipulação para conseguir resultados semelhantes.  Este é o caso dos grupos disfuncionais (entenda as características básicas de um grupo disfuncional clicando neste artigo).
Considerando que um grupo disfuncional é centrado em um líder, o qual busca saciar suas próprias necessidades às custas dos liderados, é esperável que grupos como este lancem mão de algum tipo de trabalho voluntário. Nestas seitas, o trabalho que poderia ser um exercício de caridade, de assistência aos mais necessitados, costuma se converter em uma forma de trabalho gratuito a favor do líder e da manutenção da estrutura disfuncional. 
Conheça alguns exemplos e aprenda a distinguir estas formas bastante duvidosas de trabalho voluntário:

Servir ao líder.

Um dos fenômenos mais comuns de se observar em grupos sectários é a construção de uma imagem quase divina do líder. Visto como um ser superior, este passa a ser tratado como tal. Membros passam a se sentir honrados, chegando ao ponto de disputar o cargo de assistente do líder, que passa a contar com uma série de voluntários ao seu redor para todo tipo de necessidade. De motorista a cozinheira, de faxineira a secretária, de massagista a médico, de promotor de eventos a publicitário, de consultor jurídico a contador, de garoto de recados a espião, todos em uma seita querem a chance de estar um pouco mais perto do mestre e, quem sabe, conquistar migalhas de sua confiança, admiração e reconhecimento. Alguns, é verdade, acabam subindo na hierarquia do grupo, graças a esta proximidade. Outros continuam sendo meros serviçais.

Trabalhos de manutenção

Para não precisarem arcar com salários e custos trabalhistas, muitos grupos dividem as tarefas entre seus membros. Alguns grupos conseguem montar belas estruturas graças à esta disposição de mão-de-obra gratuita. Esta é uma diferença para a qual é preciso ficar atento no momento de se escolher uma instituição onde se faça trabalho voluntário. Instituições idôneas costumam ir atrás de profissionais que possam fazer algum trabalho normalmente caro em favor de comunidades necessitadas, que não teriam condições de arcar com os custos. Por exemplo, um dentista atender voluntariamente crianças carentes, um advogado atender pro bono mulheres vítimas de violência doméstica. Em grupos sectários, a maior parte do trabalho voluntário não é para pessoas necessitadas e normalmente se trata de atividades de manutenção das instalações e serviços administrativos internos.

Bens e serviços que poderiam ser remunerados

Muitas seitas promovem atividades caras, acessíveis a um público com poder aquisitivo bom e, efetivamente, cobram por seus serviços. Podem ser aulas, sessões terapêuticas diversas, venda de produtos etc. Entretanto, os membros que trabalharam nestes bens ou serviços vendidos não recebem remuneração. Muitas seitas conseguem crescer rapidamente graças ao uso desta mão-de-obra não paga. Resta a pergunta: por que mesmo o trabalho é voluntário se o público-alvo tem poder aquisitivo? Naturalmente, para que todo o valor obtido com os bens e serviços fique na organização. Uma vez que a organização é controlada pelo líder, toda riqueza produzida pelos seus voluntários fica à disposição do líder.

Falsa caridade

A caridade, em grupos sectários, pode ter diversos objetivos que não sejam propriamente caridosos mas, do contrário, de promoção ou manutenção das práticas disfuncionais. Por exemplo, uma seita pode mobilizar seus membros para uma atividade beneficente de Natal. Com antecedência, os membros correm atrás de brinquedos usados, ou então elege-se um asilo para visitar etc. É possível fazer uma atividade desta sem qualquer custo para a organização, apenas com o esforço voluntário dos membros. Marca-se a atividade para o dia 25, para que os membros não passem este feriado com suas famílias. Após a atividade, a seita nunca mais visita o local, até porque não seria desejável que seus membros começassem a formar vínculos ou se envolver com outras realidades. Exemplos de falsas caridades são relatados por Antonio Brolezzi em seu Memórias Sexuais no Opus Dei

Proselitismo ou propaganda disfarçado

Muitas organizações lançam mão de pequenas amostras gratuitas, cujo objetivo final é fazer o membro consumir seus produtos. Isso é aceitável quando é sincero, uma prática comum no comércio. Entretanto, há grupos que fazem atividades gratuitas, promovidas como sendo atividades filantrópicas, beneficentes, assistenciais, embora o verdadeiro objetivo seja fazer as pessoas consumirem seus produtos e serviços e, quem sabe, entrarem para os quadros do grupo. Não há uma demarcação rígida entre o que é moral ou imoral neste sentido mas é preciso ficar atento para ver o quanto há de interesse velado (manipulação) por trás de cada atividade. De qualquer maneira, se o objetivo é trazer a pessoa nova para o grupo ou fazê-la consumir seus produtos/serviços, já não estamos falando em trabalho voluntário filantrópico mas em propaganda, uma atividade feita pela qual se espera retorno.

Relações públicas

Por fim, é possível utilizar caridade e filantropia como estratégia de promoção e manutenção de uma boa imagem pública. É verdade que instituições filantrópicas também precisam promover seu trabalho, através do qual recebem reconhecimento da opinião pública, de órgãos oficiais e possíveis doadores. Em grupos idôneos, a propaganda é um meio, a filantropia é a atividade-fim. Em seitas falsamente assistenciais, a filantropia é um meio de propaganda, a promoção do grupo é a atividade-fim. Uma boa filantropia normalmente requer planejamento junto com o grupo auxiliado, visando seu fortalecimento e, futuramente, independência. A filantropia de grupos sectários tende a ser mais amadora, paliativa, sem maiores preocupações com o empoderamento e a sustentação das comunidades atendidas. Não é impossível que um grupo disfuncional faça uma "verdadeira" filantropia mas, se o grupo é disfuncional, a atividade tende a não ser mantida por longo tempo nem com muito esforço, por não estar nas verdadeiras prioridades do grupo.

E você, tem ou teve experiências de trabalho voluntário? O que achou?

Para saber mais, conheça meu livro Seitas e Grupos Manipuladores: Aprenda a Identificá-los. 

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